Sempre que grandes tragédias acontecem, questionamentos relacionados à existência de Deus e aos seus atributos são suscitados nos mais diferentes círculos sociais. Nesse sentido, o ano de 2019 parece ter começado bastante oportuno a esse tipo de discussão.
O entendimento no qual se fundamenta a maioria das dúvidas sobre o assunto está na suposta incompatibilidade entre a existência do mal e a existência do Deus que segundo as Escrituras é onisciente, onipotente e onibenevolente. O filósofo britânico David Hume resumiu essa antiga e recorrente discussão da seguinte maneira: “Deus deseja impedir o mal, todavia é incapaz disso? Então, ele é impotente. É capaz, mas não deseja fazê-lo? Então, é malevolente. É capaz e está disposto? Então, por que o mal acontece?”.[1]
As inferências feitas a partir desse debate podem ser vistas no dia-a-dia de muitas pessoas, inclusive na vida de muitos cristãos. Sentir-se completamente abandonado por Deus ou duvidar de sua existência; crer que ele não está conduzindo sua vida ou o mundo de maneira sábia; desesperar-se diante de problemas que parecem insolucionáveis são algumas formas não verbais de questionar a autoridade, inerrância e suficiência das Escrituras, uma vez que a realidade exterior parece demonstrar exatamente o oposto do que ela diz sobre quem Deus é: pessoal, imanente e totalmente bondoso, poderoso e sábio.
O livro de Jó nos mostra discussões e dúvidas semelhantes a essas que por vezes enfrentamos na atualidade. Questionamentos sobre Deus, culpa, pecado, morte, justiça e retidão são suscitados na tentativa de explicar o porquê de Deus permitir a existência do mal no mundo e mais especificamente o porquê dele permitir o sofrimento de Jó – um homem que é descrito como “íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1.1).
Conquanto em momento algum da narrativa a dúvida central de Jó seja respondida por Deus, o final do livro não deixa de ser surpreendente e pedagógico. Se em muitos capítulos Jó questiona o modo de Deus agir para com ele, em apenas 4 Deus, sem responder nenhuma de suas perguntas, o faz emudecer. Na verdade, Jó não precisava das respostas que ele acreditava precisar. Ele precisava enxergar a grandeza de Deus mesmo em meio à dor e ao sofrimento. Quando isso aconteceu (Jó 38.1-41.34), suas dúvidas cessaram e sua boca antes indisciplinada e altiva passou a proferir palavras de louvor e admiração a Deus, em completa humilhação.
Da mesma maneira, quando lidamos com o problema do mal nossa primeira reação à dor é cobrar “explicações” da parte de Deus. Afinal, por que ele permite que sofrimentos nos sobrevenham? Todavia, Jó em seu discurso final nos ensina um caminho melhor. Um caminho no qual nós não obteremos as respostas que acreditamos ser necessárias, mas que nos propõe confiar humildemente naquele que tem o controle da história em suas mãos. Vejamos, abaixo, 3 considerações de Jó em meio ao seu sofrimento.[2]
- Deus é grande em poder e sabedoria. Jó começa dizendo: “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). Nessa pequena declaração está contido o reconhecimento de que Deus é totalmente poderoso e totalmente sábio. Jó reconhece que Deus não somente sabe o que faz, mas também que ele tem poder para executar cada um de seus planos. Isso significa que nada do que acontece em nossa vida, nem mesmo as piores dores, fugiu a seu controle. Como disse o profeta Daniel, “…não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: que fazes?” (Dn 4.35).
- Nós somos pequenos, fracos e pecadores.Jó continua: “Quem é aquele, como disseste, que sem conhecimento encobre o conselho? Na verdade, falei do que não entendia; coisas maravilhosas demais para mim, coisas que eu não conhecia” (Jó 42.3). Depois de reconhecer a grandeza de Deus, Jó reconhece sua própria limitação em compreender a realidade que o cercava e falar equivocadamente sobre ela. O fato é que nossa dor distorce a nossa visão de Deus e do mundo a nossa volta, e geralmente nossas palavras acompanham aquilo que os nossos olhos embaçados creem enxergar. Nesse sentido, não é possível – e nem sábio! – que criaturas finitas e pecadoras tentem compreender todos os planos do Deus infinitamente sábio, poderoso e bondoso.
- Há propósito em nosso sofrimento.Concluindo, Jó declara a Deus: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (Jó 42.5). Independentemente daquilo que vivenciou em sua dor, Jó reconheceu o fator pedagógico do sofrimento em sua vida: mais intimidade e conhecimento de Deus. De fato, o sofrimento de todo cristão tem a finalidade de o levar ao conhecimento mais profundo do Criador. Como dizia C. S. Lewis: “Deus sussurra nos nossos prazeres, na nossa conversa e por meio da nossa consciência, mas grita por meio do sofrimento”.[3
Talvez não tenhamos todas as respostas que queremos enquanto experimentamos as dores desse mundo caído. Foi assim com vários servos de Deus no passado e pode ser assim conosco também. Contudo, assim como Jó, nessas horas é importante dizermos ao nosso coração: “…eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra” (Jó 19.25). Em meio à dor, Jó olhou para o futuro com fé e esperança. Devemos fazer o mesmo ao olharmos para a cruz de Cristo, que é expressão máxima da bondade, do poder e da sabedoria de Deus. Como colocou Paulo: “Aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8.32).
Eron Franciulli Coutinho Jr
[1]David Hume em Dialogues Concerning Natural Religion. Citado por Timothy Keller em Caminhando com Deus em Meio à Dor e ao Sofrimento. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2016. Pág. 101.
[2]Baseado no livro Integridade Apesar de Tudo de Daniel Santos Jr. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2016. Págs. 315-318.
[3]C. S. Lewis, em O Problema do Sofrimento. Retirado de: Um Ano com C. S. Lewis – Leituras Diárias de suas Obras Clássicas. Ed. Ultimato, 2005, p. 317